A compensação pelo uso das águas

Autor: Ismael Moraes - advogado

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Ao uso dos recursos hídricos (ou das águas, termo quase sentimental) deve corresponder uma compensação financeira ou a participação no resultado, a ser prestada ao Poder Público por quem o utiliza (CF, art. 20, §1º).

A Lei Federal nº 6.839/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) teve, dentre muitas disposições, recepcionado pela Constituição Federal de 1988 o seu art. 4º, inciso VII, que prevê a retribuição por meio de pagamento (em princípio pecuniário) pelo poluidor pagador e pelo usuário pagador.

Em diversas ocasiões no ano passado demonstrei ao vice-governador Helenilson Pontes que o Estado pode ser reparado pelos desajustes sócio-ambientais que a grande quantidade de empreendimentos no setor primário causa. Insisti que podemos utilizar as duas figuras indenizatórias: a do poluidor pagador e a do usuário pagador. Ouvi como resposta que era difícil fazer a cobrança diante do grande esforço necessário para obter dados. Resignação inacreditável diante do aparato tecnológico posto hoje à disposição do Estado. Há mais de 150 anos, Karl Marx afirmou que quando o homem depara um problema é porque já é capaz de resolvê-lo. Se ele visse o estágio da ciência atual teria ainda mais convicção disso, a não ser, é claro, que se mantivesse em resignada submissão às mineradoras.

O caso em questão diz respeito à figura do usuário pagador, que está previsto em disposição expressa de outra lei, mas que virou polêmica porque a Vale et caterva sentem-se donas do Pará e na sua prepotência inadmitem reduzir seus lucros para entregar ao Estado qualquer retribuição pela destruição que suas atividades causem, voluntariedade aliada à genuflexão histórica dos políticos paraenses.

A água possui regime jurídico à parte do sistema aplicado aos demais minerais, cabendo à União a compensação pelo uso dos minérios (art. 20, inciso IX); e, quanto à água, a Constituição reservou também à União o direito de receber pela produção das usinas hidrelétricas ao consignar caber a ela “os potenciais de energia hidráulica” (art. 20, inciso VIII), com isso deixando claro que a titularidade do direito pelos demais recursos hídricos pertence a outra pessoa pública, daí estar excluída deste dispositivo como do posterior inciso IX, salvo quando se tratar de rio do seu domínio absoluto.

O art. 21, inciso XIX da Constituição Federal reservou ao Poder Legislativo da União a competência para instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir os critérios de outorga de seu uso. Regulamentando esse dispositivo, adveio a Lei Federal nº 9.433/97 determinando de forma taxativa que “serão cobrados os usos dos recursos hídricos sujeitos a outorga” (art. 20). Essa disposição da lei federal poderia ter sido regulamentada até por decreto, mas o Estado do Pará levou ainda 4 anos para regulamentar esse comando normativo. Os preceitos constitucionais e legal federativos por meio da Lei Estadual nº 6.831/2001, tornando executável a cobrança pela utilização dos recursos hídricos.

Mas já se vão 11 anos sem que o Estado – por suas autoridades políticas e servidores de carreira - tenha se dignado em compor-se para cobrar o que é de lei, e não existe até hoje uma mínima organização administrativa apurando medição e controle, e as mineradoras usufruem de outorga gratuita que além de ilegal é imoral, face às múltiplas carências das comunidades habitantes dos entornos das bacias hidrográficas.

Mas avancemos e coloquemos pelo menos 2 indagações para se definir a cobrança pelo uso desses recursos: por qual meio cobrar e quanto cobrar?

Em princípio, o Estado pode cobrar pelo uso da água por meio do instituto da compensação financeira, cuja origem está no §1º do artigo 20 da Constituição Federal, que assegura esse direito aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

Já o poder de definir o valor a ser cobrado pelo uso da água pode ser elucidado pela análise sistemática dos artigos da Constituição Federal que estabelecem a autonomia das entidades federativas. Em relação aos Estados, ficou assegurada a autonomia e capacidade de auto-organização, de autolegislação, de autogoverno e de auto-administração (arts. 18, 25 a 28).

As capacidades de auto-organização e de autolegislação estão consagradas no caput do artigo 25, segundo o qual “os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”.

A capacidade de auto-administração decorre das normas que distribuem as competências entre União, Estados e Municípios, especialmente do artigo 25, §1º, ficando-lhes reservadas as competências que não lhe sejam vedadas pela Constituição. Nesse aspecto, vige o princípio de que na partilha federativa das competências aos Estados cabem os poderes remanescentes que sobram da enumeração dos poderes da União (arts. 21 e 22) e dos indicados dos Municípios (art. 30). Igualmente, registre-se que não são só de suas competências as que não lhe sejam vedadas, mas também lhes cabem competências enumeradas em comum com a União e Municípios (art. 23), e as competências concorrentes com a União e o Distrito Federal (art. 24), além das exclusivas previstas no art. 25.

Em relação às competências explicitamente vedadas aos Estados, têm-se as tributárias (arts. 150 e 152), as administrativas (art. 37, XIII, XVI e XVII), e as financeiras (art. 167).

Possuem os Estados competência legislativa financeira exclusiva cabendo-lhes instituir os tributos que lhes foram discriminados (arts. 145 e 155), legislar sobre direito financeiro e estabelecer normas orçamentárias, desde que respeitem as normas gerais expedidas pela União (arts. 24, §§1º a 4º e 146). Estabelece o artigo 24, §1º que nessa matéria há concorrência com a competência da União, sendo que desta para normas gerais (sendo a Lei nº 4.320/64, que trata sobre normas gerais de direito financeiro e a Lei Complementar nº 101/2001, que trata sobre normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal).

Destarte, respeitadas as normas gerais expedidas pela União (Lei nº 4.320/64 e LC nº 101/2001) e observando as vedações financeiras estabelecidas pela Constituição Federal (artigo 167), incumbe aos Estados e Municípios elaborarem suas próprias leis de diretrizes orçamentárias, seus orçamentos anuais e planos plurianuais, realizar despesas e aplicar recursos como melhor lhes parecer, segundo as necessidades de sua administração e população, mediante planos e programas de desenvolvimento econômico e social.

Eis a base constitucional jurídico-política para que os Estados e Municípios possam ser ressarcidos utilizando-se da compensação financeira para custear estudos, projetos e a própria operacionalização de políticas públicas relacionadas com as áreas de meio ambiente e de recursos hídricos, com base nos princípios legais do poluidor e do usuário pagadores, possuindo aquelas autonomias políticas (auto-governo, autolegislação e auto-administração) e capacidade plena dentro pacto federativo.

Neste passo, devo registrar minha discordância do respeitável e culto deputado Parsifal Pontes, pois não se trata de figura tributária a compensação financeira. A sua natureza jurídica já foi delineada pelo Supremo Tribunal Federal no acórdão proferido ao ser julgado o Recurso Extraordinário nº 228.800-5/DF, em novembro de 2001, onde a Suprema Corte conclui que a compensação financeira tem natureza de receita auferida mediante a utilização de bens públicos, portanto, em nada se assemelhando às receitas de ordem tributária, mas sim sendo de absoluta ordem patrimonial. Portanto, o pagamento pelo uso da água não se fará por meio de qualquer tributo (seja taxa, imposto ou contribuição), não se submetendo, assim, o Estado aos limites constitucionais ao poder de tributar imposto pela Constituição e pela ordem jurídica. Ao contrário, sendo alienação de direito sobre o patrimônio, a obrigação de cobrar pelo uso é indeclinável e, como se viu, disposição legal cogente; mas inexiste submissão aos rigores próprios à tributação.

Sendo a compensação financeira uma contraprestação pela utilização de bem público, com fundamento na recomposição obrigatória de patrimônio estadual agredido pela atividade econômica desenvolvida no âmbito de seu território, e não recursos advindos da atividade tributária ou de transferências voluntárias da União, o Estado utilizar-se-á de sua franca autonomia política para definir o quantum razoável à recomposição espacial e social, podendo modular não só o valor como o gerenciamento de sua aplicação, como entender, nas políticas públicas mais prementes que a Administração assim definir.

Informa o deputado Parsifal Pontes em seu blog que o governador afirmara possuir informações de que a arrecadação oriunda da cobrança pelo uso das águas seria ínfima. Por certo que 400 milhões é ínfimo diante dos 5 bilhões noticiados pelos jornais “Diário do Pará” e “Estado de São Paulo”, correspondendo a 8% daquele valor. Lembra, Dr. Jatene, tudo o que os governos tucanos anunciaram com os 400 milhões obtidos com a venda da Celpa? Para a penúria em que estão as contas do Estado, podemos abrir mão de 400 milhões garantidos por toda a teia da ordem jurídica acima descrita?

As águas dos rios, as gotas finas ou as bátegas das chuvas e o orvalho encharcante da manhã marcaram minha infância e sempre fizeram parte da minha vida, como menino nascido às margens do rio Pará, o grande rio baía, quase-mar.

Poucas pessoas que leram “Cem Anos de Solidão”, do Gabo, entenderam tanto quanto apenas alguns amazônidas que, como ele, viveram o curso onipresente das águas, a passagem quando fala das chuvas e das enchentes em Macondo: “a atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas janelas, navegando no ar dos aposentos”. Já adulto, lembro dos tempos das águas grandes como um passado épico agora rasgado pelas obras que desfiguram os espaços das crenças, impedem as referências mitológicas e contrastam com os desvalidos que ficam às suas margens.

Nenhum dinheiro reparará as consequências pelo uso das águas pela indústria mineral; no máximo, minimizará algumas mazelas em favor de futuras gerações. As mineradoras devem compensar pelo uso das águas, menos como reparação de todo o mal social e ambiental que isso causa, e mais como reprimenda pecuniária, única forma de causar-lhes moderação nos abusos que cometem.

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